ONTOEVICA: Uma proposta de aplicação de ontologias para intersetorialidade em políticas públicas de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no Brasil Claudio R. Stacheira1, Remis Balaniuk2 1 Campus de Ciências Exatas e Tecnológicas – Universidade Estadual de Goiás (UEG) Anápolis – GO – Brasil 2 Programa de Pós-graduação em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação – Universidade Católica de Brasília (UCB) Brasília – DF - Brasil claudio@ueg.br, remisb@tcu.gov.br Abstract. This article discusses and demonstrates the potential that the application of domain ontologies has for the effectiveness of public policies to combat violence committed against children and adolescents. It focuses on the characterization of the domain of knowledge, on the mapping of a common intersectoral macroprocess between public agencies involved in this work and on the proposal of a formal knowledge model. It concludes that ontologies have the potential to generate convergence and semantic value between these agencies, especially in those that have transactional systems and managerial information as part of their business models, conceived only in the relational data perspective. Resumo. O artigo discute e demostra o potencial que a aplicação de ontologias de domínio possui para a efetividade de políticas públicas de enfrentamento à violência cometida contra crianças e adolescentes. Concentra-se na caracterização do domínio de conhecimento, no mapeamento de um macroprocesso intersetorial comum entre órgãos públicos envolvidos nesse trabalho e na proposição de um modelo formal de conhecimento. Conclui que as ontologias têm potencial de gerar convergência e valor semântico entre estes órgãos, especialmente nos que possuem sistemas transacionais e de informações gerenciais como parte de seus modelos de negócio, concebidos somente na perspectiva relacional de dados. 1. Introdução As conjunções entre gestão do conhecimento e tecnologia da informação vêm gerando nas últimas décadas, importantes tecnologias e métodos de prospecção, tratamento, formalização, disseminação e uso inteligente de dados e informações no mundo. Considerando os estudos de Gruber (1993), Borst (1997), Studer et al (1998), Schreiber (1999), Noy e McGuiness (2001), Gómes-Pérez et al (2005), Semprebom et al (2007) e Guizzardi et al (2008), as ontologias são um exemplo de artefato computacional resultante destas interfaces e ao mesmo tempo um importante recurso tecnológico para representação formal do conhecimento a respeito das coisas do mundo. As ontologias são úteis para explicitar construtos semânticos, estruturar modelos inteligentes em sistemas de informações e fundamentar fluxos operacionais compartilhados em processos de negócios baseados em conhecimento. Elas possuem a capacidade de articular múltiplos atores envolvidos em um mesmo domínio da realidade, que apresentam características individuais particulares e desejam atuar em sinergia, conservando sua identidade nativa ou agregando novos atributos a ela, a partir da identidade do grupo de consenso ao qual desejam participar. Com estas características a ontologia é um recurso importante para promover convergência em ambientes complexos do conhecimento, que possuem diversidade de variáveis interagindo entre si, com ou sem conflito semântico ou operativo, mas que podem gerar um resultado maior do que a soma de suas partes desde que alinhadas mutuamente aos conceitos e relações que os caracterizam. No Brasil um exemplo de ambiente complexo do conhecimento é o das ações governamentais de enfrentamento à violência cometida contra crianças e adolescentes. Proteger esse segmento da população de todas as formas de violência sempre foi e é um grande desafio para o país. Com a diversidade que é própria do território nacional, de sua sociedade e de suas instituições, vários fatores influenciam no alcance de resultados nesse ambiente. Um deles é a capacidade de ação intersetorial entre os múltiplos atores envolvidos no enfrentamento à violência. De acordo com o Ministério da Saúde [Brasil, 2012], a intersetorialidade diz respeito à concepção do trabalho a partir da articulação e da integração de políticas e ações governamentais e não governamentais. Há no âmbito das três esferas federativas de governo uma diversidade de políticas públicas, marcos legais, ações e serviços para enfrentar de maneira direta ou não direta a violência que pesa sobre crianças e adolescentes. Eles estão diluídos nos setores da saúde, da educação, da assistência social, dos direitos humanos, da segurança pública, da justiça, da infraestrutura, da economia e de outros que, sozinhos ou isolados, não conseguem responder com efetividade duradoura à complexidade do fenômeno. A dinâmica dos desafios que emergem desta complexidade exige que estes atores dialoguem em um mesmo idioma, praticado e entendido por todos ainda que cada um continue falando sua língua nativa dentro do setor a que corresponda originalmente. Nesse sentido, assumindo como premissas que: i) é dever do Estado, da família e da sociedade assegurar a todas as crianças e adolescentes brasileiros um desenvolvimento saudável e livre de violência; ii) que as interfaces entre gestão do conhecimento e tecnologia da informação são promissoras em matéria de prospecção de alternativas semânticas aos desafios de efetividade das políticas públicas para esse desenvolvimento, e; iii) o papel articulado dos órgãos e seus marcos legais, políticas e serviços públicos é estruturante para superar desafios nesse contexto, a aplicação de ontologias pode contribuir para promover a intersetorialidade no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no Brasil? O estudo ora apresentado deu-se no âmbito da conclusão do mestrado em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação, aprofundado em um projeto de pesquisa na Universidade Estadual de Goiás. Seu objetivo foi identificar o potencial das ontologias de domínio como componente de convergência, diante dos desafios para a intersetorialidade no contexto analisado. O estudo atuou na caracterização do contexto intersetorial de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, no mapeamento do macroprocesso que lhe é característico e na modelagem de uma ontologia de domínio denominada ONTOEVICA, como proposta preliminar de artefato computacional com potencial para geração de coalisão semântica e operativa no campo pesquisado. 2. Material e métodos A pesquisa desenvolvida classifica-se como um estudo de natureza teórico-empírica aplicada, de abordagem qualitativa transversal e delineamento fenomenológico. Baseou-se no contexto gerencial, nas taxonomias de classificação de tipos de violência cometidas contra crianças e adolescentes, utilizadas pelas plataformas computacionais do Sistema de Informações para Infância e Adolescência (SIPIA CT) e do Disque Direitos Humanos (Disque 100) do Governo Federal, bem como nos manuais para usuários destes sistemas. O acesso e o estudo destes dados foram autorizados pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, atualmente Ministério dos Direitos Humanos, responsável pelas referidas plataformas. Em relação ao procedimento técnico e aos meios, a pesquisa realizou análise documental e compôs um grupo de especialistas no domínio de conhecimento abordado, formado por cinco profissionais da área de direitos da infância e da adolescência com experiência mínima de dez anos na área. Para o levantamento dos componentes da ontologia foram realizados seis encontros presenciais com especialistas, além de quatro reuniões semiestruturadas de escuta a gestores responsáveis pelas plataformas acima mencionadas no governo federal. Nessas ocasiões foram utilizadas dinâmicas de representação visual do conhecimento expresso pelos especialistas e pelos gestores. A relação com estes dois grupos foi a estratégia da pesquisa para a caracterização do domínio de conhecimento, o mapeamento do macroprocesso de enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, a prospecção e formalização de termos e conceitos da ontologia proposta. A ONTOEVICA foi desenvolvida no software Protegé, baseando-se nas perspectivas de Schreiber (1999) para engenharia do conhecimento e no Método 101 proposto por Noy (2001) para a construção de ontologias. 3. Resultados e discussão No Brasil o enfrentamento à violência cometida contra criança ou adolescente é um campo das políticas públicas sociais e direitos humanos, previstos na Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990 que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). De acordo com Baptista (2012) a garantia de direitos é de responsabilidade de diferentes instituições. Presume o envolvimento de órgãos, normas, ações e processos de diferentes setores do poder público e da sociedade, assim como de diferentes níveis federativos buscando, cada qual à sua competência, garantir os direitos preconizados nos marcos legais. Não obstante, com frequência cada ator envolvido nesse processo realiza seu trabalho de maneira isolada, por vezes gerando sobreposição de competências e ações, conflito entre agendas, foco no tratamento de problemas em vez da eliminação de causas, além de expor crianças e adolescentes a situações de risco e violência. Baptista também esclarece que no Brasil as iniciativas de garantia de direitos têm sido historicamente localizadas e fragmentadas. Para a autora elas não convergem para um projeto comum que “[...] permita a efetividade de sua abrangência e maior eficácia no alcance dos principais objetivos por ela buscados” (BAPTISTA, 2012, p. 187). No país, ao contrário das políticas de saúde ou de assistência social, por exemplo, as agendas governamentais de garantia de direitos de crianças e adolescentes não contam com um sistema único instituído e administrado exclusivamente para a implementação de políticas públicas, tal como o Sistema Único de Saúde (SUS) está para as políticas de saúde ou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) está para a assistência social. Há um constructo de natureza complexa chamado Sistema de Garantia de Direitos (SGD), concebido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) por meio da Resolução 113, de 19 de Abril de 2006, que estrutura-se a partir da articulação e da integração das instâncias públicas de governo e da sociedade civil, em rede. A Figura 1 explicita as características dos três casos onde, a começar pelo esquema constitutivo, genericamente A (SUS) e B (SUAS) possuem um modelo em formato piramidal, verticalizado e baseado na ação sincronizada em três camadas (federal, estadual e municipal), enquanto que C (SGD) é circular. Nessa visão, A e B sempre contam com um órgão público do poder executivo nacional, estadual e municipal, com mandato homólogo ao respectivo ministério que ocupa, na camada federal, o topo da pirâmide como responsável pela gestão nacional da política setorial de sua competência. Essa característica não se repete em C, onde o funcionamento não é hierárquico e depende da convergência entre os arranjos setoriais de políticas públicas (dentre eles o SUS e o SUAS) que só pode ser estabelecida, na perspectiva da presente pesquisa, a partir de atributos semânticos que darão significado às camadas operacionais do trabalho entre os órgãos envolvidos. Figura 1: Modelo de organização do SUS, SUAS e SGD para gestão de políticas públicas O SGD não possui uma estrutura de órgãos homólogos nas três esferas de governo como ocorre com os dois outros exemplos. No seu caso, diferentes setores do poder público e também da sociedade civil atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. A legislação nacional prevê, por exemplo, que o direito à saúde das crianças e adolescentes seja garantido pelo SUS, o direito à educação pelo sistema educacional e a assistência social pelo SUAS, esperando (sem previsão legal) que ocorram de maneira articulada pelo SGD. Além desses casos, promoção, proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes mobilizam outros setores temáticos das políticas públicas, organizadas ou não em sistemas únicos ou que estão pulverizadas entre os três níveis de governo. Para funcionar com efetividade o SGD depende da articulação entre os órgãos envolvidos na promoção, proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes. Para orquestrar esse processo existem os Conselhos Tutelares que, previstos na Lei que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, além de desempenhar competências específicas a eles designadas, devem atuar como articuladores da Rede de Proteção Social Local. Essa Rede é um arranjo organizacional aberto, composto pelos órgãos locais dos sistemas setoriais de políticas públicas e por organizações não-governamentais parceiras em cada localidade. Considerando que cada qual têm competências específicas, mas também complementares, a convergência entre elas depende de um modelo de conhecimento comum, pois na Rede e no SGD como um todo misturam-se aos demais sistemas setoriais ao longo do ciclo de vida das políticas públicas. Por isso o contexto do enfrentamento à violência cometida contra criança ou adolescente caracteriza-se como um domínio complexo de conhecimento. Nele a informação é fator chave nesse cenário para a articulação de elementos diversos em um sistema complexo. Nesse sentido, para responder ao seu principal questionamento a presente pesquisa definiu como ponto de partida o Sistema de Informações para Infância e Adolescência (SIPIA CT) e o Disque Direitos Humanos (Disque 100). Ambos são sistemas/ações promovidas em um contexto de políticas públicas pelo governo federal. O SIPIA CT é um sistema de informação criado na década de 1990 para apoiar Conselheiros Tutelares nos processos de registro, tratamento e processamento de dados sobre os atendimentos de promoção, proteção e defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes por eles realizados nos municípios. O Disque 100 é uma estratégia nacional de enfrentamento aos diferentes tipos de violência contra a pessoa humana, que possui um módulo específico para tratar de demandas de promoção, proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes. Quando da realização do presente estudo o SIPIA CT e o Disque 100 estavam vinculados à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). A pesquisa identificou pontos de aproximação e outros de convergência entre o SIPIA CT e o Disque 100. Os dois casos são promovidos pelo Governo Federal por meio de um mesmo órgão gestor. Dirigem-se a apoiar as Redes de Proteção Social Local nos territórios para a efetivação de políticas públicas e demais ações de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. Em suas matrizes taxonômicas de classificação de violações de direito os dois consideram a Lei 8069 como raíz semântica, muito embora o SIPIA CT utilize-a como sua única referência para uma taxonomia de mais de 200 categorias de violação de direitos, enquanto o Disque 100 usa como um dentre seus vários documentos para fundamentar uma taxonomia com 14 classes. Os dois casos também assumem o Conselho Tutelar como principal ponto focal no município para receber e responder às demandas de direitos da infância e da adolescência, assim como dar andamento às providências diante de situações de violação, ainda que o Disque 100 trabalhe diretamente com outros órgãos como, por exemplo, os Centros de Apoio Operacional aos Promotores da Infância e Juventude (CAOPIJ’s), do Ministério Público. Outro fator de encontro entre eles são os processos operacionais complementares, considerando o trabalho do Disque 100 no recebimento nacional, centralizado e em escala, das denúncias de situações de violência e do SIPIA CT no apoio aos Conselhos Tutelares, seja para a gestão da informação em torno da averiguação de consistência e confirmação destas mesmas denúncias, na prescrição e acompanhamento de providências a serem tomadas com a Rede de Proteção Social local para reestabelecer direitos violados, em uma rotina articulada. Tais elementos de enlace convivem com uma dinâmica separada de gestão do SIPIA CT e do Disque 100. Quando da realização da etapa de campo da pesquisa, cada um estava coordenado por equipes distintas em setores distintos no mesmo órgão. Ambas constituíam duas comunidades com visões de mundo específicas a respeito do fenômeno e dos processos em que estavam atuando, ainda que com similaridade em suas abordagens. Mesmo em condições complementares, SIPIA CT e Disque 100 não apresentaram nenhum modelo de articulação semântica ou operacional de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. Constatou-se que havia um discurso positivo de integração entre os sistemas nas suas respectivas equipes e na alta gestão do órgão, restrita à dimensão operacional, limitada a discutir modelos relacionais entre bases de dados e de aproximação entre fluxos operacionais. Macroprocesso intersetorial de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes A convergência entre o SIPIA CT e o Disque 100 é um fator potencial de fortalecimento das ações e relações intersetoriais de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no âmbito do SGD. Assumindo os Conselhos Tutelares como órgãos estratégicos da Rede de Proteção Social Local, esta como sendo o SGD no território e, considerando ainda o elevado número de denúncias que são encaminhadas a estes órgãos pelo Disque 100, o presente estudo compreende que essa convergência passa por reconhecer o SIPIA CT e o Disque 100 em um macroprocesso compartilhado, tal como demostrado na Figura 2. O macroprocesso é caracterizado como um ciclo de trabalho genérico e de convergência entre SIPIA CT, Disque 100 e Rede de Proteção Social Local, movimentado por um modelo formal de conhecimento. Divide-se em duas camadas, sendo: i) Acolhimento da denúncia e averiguação/registro do fato (C1), e; ii) Atuação intersetorial para garantia de direitos (C2). A camada C1 trata da identificação e absorção das denúncias por parte da Rede de Proteção Social Local. Isso ocorre na etapa A. Nela o SIPIA CT e o Disque 100 propõem-se a fazer o registro da denúncia realizada por um agente de proteção. O Disque 100 faz o acolhimento de denúncias como sua principal operação, por isso é considerado a principal portal de entrada nacional para denúncias de violência. O SIPIA CT, por sua vez, faz esse registro como primeira etapa do processo de gestão do caso concentrado na localidade de atuação do Conselho Tutelar. Não há nenhuma prática de interoperabilidade entre os dois sistemas, mas o Disque 100 poderia entregar as denúncias que registra diretamente no SIPIA CT. Isso facilitaria as rotinas da etapa B, retroalimentando o trabalho do Disque 100 e apoiando o Conselho Tutelar na geração dos insumos sobre o caso. A Rede de Proteção Social Local deve ser mobilizada já na etapa B, muito embora atue ativamente em suporte aos Conselhos Tutelares identificando situações de risco ou violação de direitos em seu território. Nessa etapa, a partir de C1 ocorre a averiguação da denúncia que, sendo confirmada, é convertida em fato e dá seguimento ao processo de promoção, proteção e defesa de direitos em C2. Figura 2: Macroprocesso genérico de atuação intersetorial para o enfrentamento à violência cometida contra crianças e adolescentes Tendo constatado o fato de violação de direitos, o Conselho Tutelar inicia suas providências requisitando serviços aos órgãos setoriais da Rede de Proteção Social Local. Mobilizados, os órgãos da Rede iniciam a execução de suas operações materializando as ações, serviços e políticas públicas para o segmento atendido (etapa 1 de C2). Desde a etapa B de C1, mas especialmente em 1 de C2, a Rede pode agir baseando-se em uma visão fragmentada da realidade ou com abordagem intersetorial expandido sua visão de mundo. Por si mesmos os órgãos da Rede não possuem conexões formais que os articulem ao ponto de operarem intersetorialmente em escala. Cada órgão atua com base na sua atribuição, pois a cultura e o modelo de gestão pública brasileira pouco favorece os enlaces entre responsabilidades envolvidas na garantia de direitos (etapas 2 e 3 de C2). Isso reforça a proposta de que os Conselhos Tutelares precisam atuar como articuladores da Rede no território, pois possuem natureza transversal e circulante entre os demais órgãos no território. Essa perspectiva diz respeito à etapa 4 de C2, assim como ao acompanhamento permanente do caso ao longo de sua passagem pelo ciclo feito pelos Conselhos Tutelares. Nesta etapa dois caminhos podem ser tomados: um deles (não necessariamente o primeiro) aponta para o encerramento do caso desde que haja ressarcimento do direito violado e medidas preventivas em curso, para que o fato não se repita (componente X). Outro, em caso de não suficiência, é repetir o ciclo desde a etapa 1 de C2, até que os direitos violados sejam restituídos à criança ou ao adolescente. Sendo o SIPIA CT capaz de servir aos conselheiros tutelares nestes processos e desde que conectado ao Disque 100, pode enviar dados em tempo real para que a camada nacional de gestão de políticas públicas receba subsídios de alto valor agregado para apoio à tomada de decisão. Diante do macroprocesso apresentado, considera-se que falta alinhamento entre os conceitos, relações e procedimentos utilizados no cenário investigado para compreender e impulsionar os processos de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes de maneira intersetorial. A informação exerce papel estratégico nesse processo e na efetividade do funcionamento da Rede de Proteção Social Local (SGD). O acolhimento de denúncias de violação de direitos, a averiguação de sua veracidade, a requisição dos serviços públicos, o encaminhamento da criança e/ou do adolescente ao atendimento requisitado, bem como o acompanhamento permanente do possível fato até seu encerramento são ações intersetoriais permanentes, independentemente da situação de violação ou do serviço público mobilizado. Isso imprime no macroprocesso de enfrentamento da violência uma visão estendida, mais integral, menos fragmentada a respeito da situação e da condição da criança ou do adolescente. Trata-se de um fator decisivo para políticas públicas dirigidas a esse segmento, considerando a possibilidade de superar as dificuldades de comunicação entre diferentes órgãos e serviços públicos. Modelo formal de conhecimento proposto Com base na pesquisa realizada foi desenvolvida uma ontologia de domínio denominada ONTOEVICA (Ontologia sobre o processo intersetorial de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no Brasil). Seu objetivo é fornecer uma estrutura comum para que sociedade e Estado possam qualificar suas ações de identificação e registro de denúncias de violação de direitos humanos de crianças ou adolescentes, órgãos públicos possam acolher e encaminhar denúncias para Conselhos Tutelares, Conselhos Tutelares possam mobilizar a averiguação das denúncias, definir providências, acionar órgãos de atendimento da Rede de Proteção Social Local, acompanhar atendimentos realizados por órgãos de diferentes setores das políticas públicas e encerrar casos com a restituição de direitos e a prevenção a novas situações de violência. A pesquisa formalizou 38 termos, dentre eles os que possuem o maior volume de conexões na ontologia. Prospectou outros 20 termos, totalizando uma taxonomia com 58 conceitos divididos em 19 superclasses, 29 classes e 10 subclasses. Os conceitos expressados consideram as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990), a experiência da Administração Pública Federal e visões externas captadas ao longo da pesquisa, a partir da leitura de contexto em relação ao SIPIA CT e ao Disque 100. Também foram obtidas 36 propriedades de objeto, das quais 28 delas resultaram do trabalho junto aos especialistas consultados. As Figuras 3 e 4 demonstram, respectivamente, a visão de primeiro nível dos conceitos (demonstração das superclasses da ontologia) e a visão geral das relações semânticas do modelo ONTOEVICA desenvolvido. O modelo alcançado envolve conceitos de campos variados do conhecimento, não somente do campo da administração/gestão pública enquanto arcabouço funcional das políticas públicas de enfretamento à violência contra crianças e adolescentes. Verifica-se uma diversidade de termos que são comuns nas áreas do direito (legislação, direitos da criança), da sociologia (denúncia, fato, caso, sujeito de direitos, criança, adolescente, família), da administração pública (rede de proteção social, esfera do poder público, políticas públicas), dentre outros. São igualmente múltiplas e diversificadas as relações entre os conceitos elicitados, demonstrando a congruência da visão que considera a área dos direitos da criança e do adolescente como um domínio complexo do conhecimento, intersetorial e multidisciplinar. Figura 3: Visão de primeiro nível das superclasses da ontologia ONTOEVICA Ainda que a hierarquia das classes exiba termos utilizados para caracterizar os direitos da criança e do adolescente, ressalta-se que a taxonomia se refere à visão de mundo que expressa o processo de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes enquanto domínio pretendido. Figura 4: Visão geral das relações semânticas do modelo ONTOEVICA As especificações do modelo ONTOEVICA podem ser mais bem evidenciadas nos documentos complementares da pesquisa ora apresentada, onde encontram-se descritas as propriedades e a descrição dos conceitos e de suas relações semânticas. 4. Conclusões Embora o presente estudo tenha assumido que existe algum grau de convergência entre os diversos atores envolvidos no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, não pode deixar de reconhecer que existem dificuldades na articulação das ações por eles desenvolvidas. A pesquisa evidenciou que os órgãos públicos responsáveis por este processo atuam a partir de uma visão fragmentada da realidade. Frente aos resultados da pesquisa, conclui-se que as ontologias de domínio possuem potencial de gerar convergência entre órgãos e suas ações, serviços e políticas públicas, em especial diante daqueles que possuem sistemas transacionais e de informações gerenciais como parte de seus modelos de negócio, concebidos na perspectiva dos modelos relacionais de dados. Em vista da complexidade e da diversidade de variáveis e de relações envolvidas no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, nota-se que a desarticulação das políticas públicas também contribui para o distanciamento entre o que se planeja em nível estratégico e o que se executa em nível de rua. As possibilidades para essa articulação são múltiplas. A intersetorialidade é uma delas e a aplicação de ontologias é uma alternativa que ressalta o valor semântico nos esforços que estruturam condições para que a articulação entre setores das políticas públicas aconteça. A esse respeito conclui-se que o modelo ONTOEVICA tem potencial para animar a convergência neste contexto. Referências BAPTISTA, Myrian Veras. (2012) “Some reflection on the system of guarantee of rights”. Serviço Social & Sociedade, São Paulo. BRASIL. (2012) “Glossário temático: promoção da saúde”. Brasília. BRASIL. (2016) Resolução CONANDA número 113. In: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da- crianca-e-do-adolescente-conanda/resolucoes/resolucoes-1. Dezembro de 2015. GOMES-PEREZ, A. et al. (1999). “Ontological Enginnering: with examples from the áreas of knowledge management”. Madrid. GRUBER, T. A. (1993) “Translation Approach to Portable Ontology Specifications”. Knowledge Acquisition. GUIZZARDI, G., et al. (2008) “A importância de ontologias de fundamentação para a engenharia de ontologias de domínio: o caso do domínio de processos de software”. In: IEEE Latin America Transactions. NOY, N. F.; MCGUINNESS, D. L. 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